INTRODUÇÃO: CONSTANCE ESCOBAR
ENTREVISTA: MARIA CANABAL
FOTOS: PHILIPPE VAURÈS SANTAMARIA

Poilâne

Em um tempo em que ainda não se sabia quem era o padeiro americano Chad Robertson e que o Rio de Janeiro era um deserto em matéria de bons pães, um dos meus grandes prazeres nas passagens por Paris era trazer na mala uma miche da padaria Poilâne. Ao chegar em casa, eu contava as fatias e saboreava  aquele número: tantos dias de bom pão garantido.

Muita coisa mudou nos últimos dez anos. O fenômeno Tartine Bakery transformou a Califórnia na nova meca do pão de fermentação natural. E o Rio de Janeiro, quem diria, passou a abrigar a padaria considerada por muita gente como a melhor do País. Mas há coisas que não mudam: trazer à mesa a miche da Poilâne continua a ser uma espécie de exercício de contemplação. Segundos antes de devorar cada fatia, os sentidos assimilam a cor, a textura, o aroma daquele pão rústico de miolo denso edimensões generosas, de modo que as sinapses assegurem a eficiência da comunicação: eis um pão com P maiúsculo.

Assinatura da loja inaugurada por Pierre Poilâne em 1932 na rue du Cherche-Midi (que hoje tem filiais não apenas em Paris, mas também em Londres), a emblemática miche tem a força das coisas que resistem ao tempo e aos modismos. Lançado em outubro passado, o novo livro de Apollonia Poilâne, CEO da companhia e terceira geração de padeiros na família, parece assumir a missão de lembrar isso ao mundo – ou ao menos aos Estados Unidos da América.

Embora tenha alguns livros publicados na França, a nova obra, intitulada Poilâne: The Secrets of the World-Famous Bread Bakery, é sua primeira em língua inglesa. Deliberadamente voltada para o  público norte-americano, é prefaciada por AliceWaters, que sentencia: “Acredito que, de muitas maneiras, o bom pão que temos hoje nos Estados Unidos existe graças à bela miche da Poilâne”.

Filha de Lionel Poilâne e neta de Pierre, Apollonia iniciou o aprendizado na padaria da família ainda na adolescência. Como todos os demais padeiros que passaram por ali, foi treinada sem receitas, apenas aprendendo a usar os sentidos por meio de constante e exaustiva repetição. Sabia que estava predestinada acomandar aquela engrenagem no futuro, embora não imaginasse que a sucessão se daria tão cedo – ela tinha apenas 18 anos quando perdeu os pais prematuramente num trágico acidente.

Antes mesmo da morte de Lionel Poilâne, a marca já havia iniciado seu crescimento, ganhando penetração internacional, sem perder o caráter  artesanal de sua produção. Tal expansão foi permitida pela criação de um espaço em Bièvres, a 15 km de Paris, batizado como Manufacture. Em meio a um bosque, a edificação circular projetada pela arquiteta Ibu Poilâne (esposa de Lionel e mãe de Apollonia) abriga 24 fornos a lenha, réplicas do original instalado na matriz, operados em turnos por diversos padeiros. Assim, garantiu-se produzir em larga escala sem, contudo, substituir mãos por máquinas.

A história que se iniciou em 1932 mantém suas marcas no pão de hoje: a cada lote de massa, um pedaço é mantido para alimentar o próximo lote. E a miche continua a ser produzida exatamente como antes: apenas água, farinha de moinho de pedra, sal de Guérande e levain do lote anterior.

Em sua nova obra, Apollonia compartilha com o leitor esta história: memórias, detalhes dos processos de produção e receitas que vêm povoando sua jornada desde que assumiu o ofício herdado do pai, assegurando longevidade ao projeto idealizado pelo avô. Em entrevista concedida à jornalista Maria Canabal, em Paris, ela nos fala sobre o novo livro, o desafio de dar continuidade ao legado da família e o significado do pão em sua história.

Este é o seu primeiro livro em inglês?
Sim, de fato, eu já publiquei vários livros em francês, mas esse tem um lugar especial no meu coração, eu queria um livro para o ano de 2020. Ele vem passando pela minha cabeça há vários anos, e eu finalmente encontrei o estilo e o fio condutor que eu queria.

Que é qual exatamente?
Eu queria que fosse um livro que descrevesse a nossa relação com o pão ao longo de todo o dia. Ele é dividido em capítulos e receitas de acordo com o momento do dia. Eu adoro a meia-noite, por exemplo. Você já percebeu que relógios digitais registram a meia-noite como 00:00? É um oito deitado, o símbolo do infinito. O 8 é um número que me persegue.

Por quê?
Meu avô abriu a padaria Poilâne no número 8 rue du Cherche-Midi, em Paris. Em 2020, a padaria vai comemorar seu 88o aniversário. Também em 2020 serão 18 anos desde que me tornei CEO da padaria.

Aos 18 anos, você assumiu o empreendimento da família. Você poderia ter renunciado...
Meus pais morreram tragicamente em um acidente de helicóptero. Eu tinha 18 anos, e minha irmã, 16. Eu havia sido aceita em Harvard, mas eles me impuseram uma condição: eu não iria logo após a conclusão do ensino médio. Tiraria antes um ano sabático. Durante meu ano sabático, eu trabalhei na Poilâne. Quando meus pais faleceram, deixei o forno e fui para o escritório, por força dos acontecimentos. Então segui para Harvard, mas continuei administrando a padaria mesmo a distância. Ao longo desse período, recebia as miches por correio expresso junto com as faturas a pagar. Ao me formar, voltei e retomei o trabalho na empresa.

Nunca pensou em vender?
Quando meus pais partiram prematuramente, todos ao nosso redor nos aconselharam a vender. Eu não podia vender! Nasci e cresci na padaria. Eu dormia nos cestos usados para fermentar as miches... Era previsto que eu um dia assumiria a padaria, era o que eu realmente queria fazer. Apenas o fiz mais cedo do que o esperado. Foi um trabalho colossal conduzir meus estudos e administrar a padaria ao mesmo tempo. Mas eu não estava destinada a uma carreira no setor bancário, por exemplo, depois de Harvard.

Como você vê a relação com o pão atualmente?
Todas as dietas abordam o pão, afinal é o nosso alimento básico. Agora que mais e mais alergias estão surgindo, novamente tentam culpar o pão. Desde 1932, temos trabalhado juntamente com nossos moleiros, com especificações e requisitos muito precisos. Isso que se passa com o pão é para fazer refletir. Eu sei bem o que há desde sempre em meus pães: água, farinha francesa moída em mós de pedra, sal de Guérande e levain do lote anterior. Quatro ingredientes, nada mais. Sei que meu pão é saudável, sem aditivos e feito com fermentação natural. Um pão que pode alimentar uma família e permanece excelente por dez dias, se quiser.

Atualmente, muitos padeiros se voltam para a escola americana do sourdough, quase como se o pão de fermentação natural tivesse sido inventado na Califórnia...
Na verdade, o que me importa é que se fale cada vez mais sobre pão de fermentação natural.

Agora, há levain e levain... Há inclusive levain falso... Ou comprado em catálogo...

Poilâne é mundialmente conhecida por seu pain au levain, mas não faz baguetes...
Não. Meu avô nunca fez uma baguete. Nem meu pai. Nem eu. Espero que meus futuros filhos também não façam (risos).

Faz 88 anos que nos dedicamos a isso: o pão de fermentação natural, feito com levain do lote anterior. A fermentação é longa, o que torna nossos pães muito mais digestíveis e saudáveis. Nossas miches têm algo de comovente, simplesmente por seu perfume, sua modelagem.

A empresa abriu diversas lojas desde que você assumiu. Continuam mantendo sempre os fornos a lenha?
Sim. Na Poilâne, trabalhamos exclusivamente em fornos a lenha. Isso também faz parte da nossa assinatura. É o trabalho no forno, o fogo, lembrando de onde viemos. Fazer um forno é saber que dará a vida ao pão. Tenho uma lembrança especial de Londres. Eu tinha 16 anos e minha irmã, 14. Meu pai nos fez acender o forno no primeiro dia de produção da padaria que inaugurava lá. Um símbolo e tanto. Fazer pão é algo sagrado.

Nesta edição
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